quarta-feira, 24 de agosto de 2011

LifeisGame


Com o indicador encostado ao ecrã empurra-se uma linha e desenha-se a expressão de um sorriso. Empurra-se uma outra linha que finge ser a sobrancelha e levantamos o olho para revelar outra emoção. Enquanto empurramos linhas, vemos uma cara a reagir. Um homem de barba mal feita e careca que, apesar dos animais e bonecos simpáticos que se possam oferecer, parece ser o favorito dos meninos. Estamos no LifeisGame, um jogo de computador feito a pensar em crianças que têm uma perturbação do espectro autista e que precisam de aprender a identificar a expressão de emoções num rosto humano.

Chamar-lhe apenas jogo de computador ao LifeisGame é pouco se tivermos em conta o seu potencial mas vamo-nos concentrar no que os investigadores da Universidade do Porto têm neste momento para mostrar. A ferramenta de trabalho - uma inédita base tecnológica que será aplicada em diversos suportes (desde o computador pessoal a um iPhone ou iPad, passando por 3D, realidade virtual e mesa digital) e terá vários níveis de dificuldade - está a ser desenvolvida por uma equipa que engloba o departamento de Ciências de Computadores da Faculdade de Ciências, especialistas da faculdade de Psicologia e terapeutas da Associação Criar, num projecto que está inserido na colaboração da UP com a Universidade de Austin, no Texas. Há também parceiros, como o Instituto Tecnológico e a Microsoft, que ajudam a optimizar o plano de trabalho financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. E, claro, os meninos também fazem parte da equipa.

No total são mais de 30 investigadores, alguns alunos de doutoramento ou mestrado. O objectivo central é ajudar a construir uma ferramenta inédita para a terapia de crianças autistas. Eles que podem ter mais ou menos (dependendo do défice emocional da criança) dificuldades em reconhecer as emoções no rosto humano são, para já, o centro de tudo. A investigação começou há cerca de um ano e Verónica Orvalho, a investigadora principal, que é docente no departamento de Ciências de Computador, confirma que os níveis mais básicos já estão preparados e a ser testados por crianças com perturbações do espectro autista (ver texto ao lado). Mas, a investigadora não quer deixar escapar a oportunidade de fazer o apelo urgente: "Precisamos de ter mais associações e instituições que trabalhem com estas crianças e que queiram participar neste projecto, ajudando-nos a validar esta ferramenta e a encontrar as melhores opções para eles."

Agora o LifeisGame pode ser explorado no computador pessoal mas já em Setembro a líder do projecto espera ter alguns desafios deste jogo para apresentar numa versão iPad e iPhone. A ideia é ter um jogo que possa ser levado para casa para que as crianças possam "brincar" e trabalhar com os pais. Verónica Orvalho gostaria mesmo que, em Setembro, já com a versão iPhone e iPad, esta ferramenta terapêutica fosse disponibilizada gratuitamente às crianças. "Antes de começar este projecto percebi que existiam centenas de jogos e outros apoios para trabalhar com as cores, com a linguagem e com outras dificuldades que estas crianças podem ter. Mas não encontrámos nada que trabalhasse com a expressão das emoções", explica Verónica Orvalho.

No futuro, este "jogo" poderá ainda ter incorporada a "melodia da voz" para "comunicar" com a criança que o utiliza e, quem sabe, ajudar também em terapia vocacionada para dificuldades na linguagem, acrescenta Tiago Fernandes, um dos alunos de doutoramento de Ciência de Computadores. "Pode parecer muito simples dizer que vamos juntar a voz mas é muito complexo", avisa. Além da voz, há outro difícil passo para concretizar no futuro: dar um corpo ao personagem. E, depois, até um cenário.

Tudo é muito complexo no desenho desta nova plataforma tecnológica. Mas, fora do mundo informático, as decisões também não são fáceis. Veja-se o caso da escolha das imagens que vão ser usadas (no nível mais básico do jogo) para mostrar a expressão das emoções. Segundo Cristina Queirós, investigadora da Faculdade de Psicologia, foi preciso recorrer a uma base de dados holandesa com centenas de fotografias e depois validar as imagens que melhor reproduzem essas emoções junto de um grupo de controlo com mais de 400 adultos e crianças que não possuem perturbações do espectro autista. A mesma estratégia é usada para optar entre uma personagem realista (rosto humano) e um animal ou um boneco.


"Uau! Que divertido."

Numa divisão de tarefas simples, a equipa de Psicologia fica responsável pela preparação do guião que depois terá de ser executado pelos investigadores de Ciências de Computador, conclui António Marques, do Instituto Politécnico do Porto. Mas a comunicação entre os dois mundos com linguagens diferentes nem sempre é imediata. Verónica Orvalho sorri quando dá o exemplo: "Pediam-me um personagem a sorrir. E eu pergunto, mas a sorrir quanto? É que nós temos te ter tudo quantificado, com números."Há um grupo de crianças, acompanhadas por terapeutas da Associação Criar, no Porto, que já experimentaram alguns dos níveis mais básicos do LifeisGame no computador, trabalhando com seis emoções básicas: alegria, tristeza, nojo, medo, raiva e surpresa. Quer seja simplesmente escolher uma imagem (fotografia) que melhor mostre a expressão dessa emoção, quer seja a desenhá-la no personagem que faz parte do jogo de computador. A escolha pode ser feita com a ponta do dedo que toca no monitor (touchscreen) ou com o rato.

O protótipo do LifeisGame ainda é limitado, mas entre as sete crianças que já experimentaram os níveis mais básicos do jogo, a reacção satisfez os investigadores. "Ficam deslumbrados quando vêem que mexem na linha e a cara reage", conta a terapeuta Maria Mena sublinhando que o facto de serem colocados perante um computador já é, por si só, um atractivo. "O funcionamento de um computador para uma criança autista é estimulante. É previsível, segue regras e os espaços são sempre os mesmos. Isso é bom para eles", nota a psicóloga Samanta Alves, também envolvida no projecto.

Normalmente, esta dificuldade no campo do reconhecimento da expressão das emoções nas crianças autistas é trabalhada pelos terapeutas com recursos a cartões com símbolos, fotografias de caras ou "smiles", entre outras ferramentas. Este suporte no computador abre uma série de novas possibilidades mais dinâmicas para a terapia. Permite, por exemplo, adaptar o nível do jogo ao nível de desenvolvimento da criança, medir de uma forma fácil o tempo que esta demora a identificar a expressão de uma emoção e ir progredindo no contexto terapêutico aumentando os níveis de dificuldade do jogo.

As experiências começaram em Abril e, por isso, é muito cedo para registar progressos. Maria Mena procura nas páginas de um processo as reacções escritas dos sete "jogadores" que já usaram o protótipo LifeisGame. "Uau! Que divertido", é um exemplo. Há quem feche os olhos e quem faça "caretas" imitando as expressões que desenha na cara do personagem. A psicóloga Mónica Oliveira e a terapeuta Ana Santos realçam um "bom sinal". É que das três opções oferecidas pelo jogo para a escolha do personagem com quem interagir, as crianças têm escolhido sempre a figura humana. "É uma vantagem e é um bom sinal. É meio caminho andado para o objectivo final que é o salto deste trabalho para as situações do dia-a-dia. Se escolherem figuras realistas é mais fácil", nota a psicóloga.

Porque era obrigatório definir um limite, estabeleceu-se que o jogo seria desenhado para crianças com idades compreendidas entre os 6 e 12 anos, mas a verdade é que não haverá limites etários.

Fonte: Público Online

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